Precisava ir ao
banheiro.
Bruno caminhava
lentamente pelo corredor que saía de seu quarto. Passos lentos e leves para não
acordar seus pais. Já era tarde e ele não pretendia ver a fúria nos olhos da mãe.
Eles lhe
perguntariam: “Por que diabos está acordado até agora?!”. A resposta era óbvia:
ele estava em seu computador. Os seriados consumiam suas madrugadas de
férias. Seu pai já ameaçara confiscar o laptop,
caso Bruno fosse pego novamente acordado tarde da noite.
A bateria do
celular já anunciava a proximidade do desligamento. O telefone servia como
lanterna para o caminho ao banheiro.
A escuridão era
ameaçadora. Logo à frente, uma escada de madeira. Lisa e longa. Se o aparelho
desligasse, ele estaria apenas a mercê da luz prata da lua.
Era Lua Nova e tudo
estava com um aspecto negro mesclado ao prateado em meio às trevas. O casarão
antigo gritava dolorido a cada passo vagaroso nos tacos de mogno. A luz fraca
do celular refletia no assoalho que recentemente fora encerado pelas mãos da
habilidosa empregada.
Dona Bardô era
velha e seca. Trabalhara às três famílias que lá moraram. Dormia num casebre
que ficava no jardim de trás do casarão. Limpava todos os dias, mas raramente
era vista pelos patrões. Discreta e circunspecta, só falava com os chefes no
dia do pagamento. Sempre comentavam do mau hálito da velha com o filho.
O que chamava a
atenção de Bruno era o jeito como ela andava arcada combinado às olheiras,
deixando a impressão de um eterno cansaço.
Ele continuou a
andar devagar, sempre pedindo mentalmente que o piso não rangesse tanto. Passou
em frente ao quarto dos pais e teve a sensação de não ter ninguém lá. O ar que
soprou era solitário e frio. Tinha uma forte convicção de que estava sozinho em
casa. Ninguém dormia ali.
A certeza
estranhamente não lhe pareceu loucura. Era um cético. Não acreditava em
energias, muito menos em sexto sentido.
Nada daquilo fazia
sentido, finalmente percebeu.
Sorriu aliviado.
Continuou o trajeto ao banheiro. Alívio real sentiria quando chegasse lá.
O celular gritou
num pedido de “carregue-me” assim que chegou a escada. Dezenove degraus em
curva que chegavam à sala principal. A bateria não poderia acabar ali, tinha
pelo menos que descer os degraus em segurança!
Quando
inconscientemente contou o décimo terceiro degrau descido, ouviu-se o último
grito do celular e, em um fraquejo, emitiu o último raio de luz. Escuridão.
Merda.
Piscou três vezes
os olhos para habituar-se ao escuro. Sua nova fonte de luz era a Lua, que
entrava na casa e era refletida pelo piso polido.
Desceu os últimos
seis degraus
O silêncio, nunca
antes escutado naquela sala, impressionou Bruno grandemente. A atmosfera sem
som cheirava à esterilidade. Nada com vida poderia viver ali a noite. Algo
acelerou sua adrenalina. Seu coração batia forte, podendo senti-lo na garganta.
Em um flash seus olhos fecharam e ele voltou
àquele momento no quarto do vizinho, João. Seu rosto cheio de espinhas e seu
dente consumido pelo tártaro eram iluminados por uma lanterna debaixo para
cima.
– Vocês deveriam
demitir aquela velha. – Disse lentamente. – Você nunca sentiu o cheiro de bosta
da boca dela?! É coisa de feiticeira, é uma praga às bruxas...
– Cale a boca, João!
– Repreendeu Bruno.
– Você não sabe o
que aconteceu para a primeira família partir da sua casa e vendê-la a preço de
bananas...?
João esperava
ansiosamente o interesse de Bruno. Não recebendo, continuou a história mesmo
assim:
– A filha mais nova
do primeiro patriarca da casa foi assassinada... – Ele sorriu e voltou a falar
lentamente. – ...Lá dentro.
Os olhos de Bruno
tremularam procurando um sinal de verdade no rosto de João. A acne do garoto
avermelhou-se de prazer quando sentiu o medo demonstrado.
– Dizem que o
cachorro da família comeu a menininha de madrugada. – Ele ria convulsivamente.
– E imagina quem era a babá da vítima?! Dona Bardô, a bruxa do casarão.
– Dessa vez você se
superou na criatividade. – Bruno riu e, para seu desgosto, saíra uma risada um
tanto insegura.
– Minha avó se
lembra de quando aconteceu... dos comentários. – João falava muito sério. Bruno
preferia acreditar que João era um grande mentiroso.
– Minha avó disse
que uma semana depois da família partir, o delegado da cidade encontrou dona
Bardô dentro do casarão... Na sala... – Ele deu um sorriso torto, até ele
estava possuído pelo medo. – ... Conversando com o espírito da menininha morta.
Então Bruno abriu
os olhos e estava de volta ao pé da escada, na sala principal da casa.
Escuridão.
Aquela lembrança o
pegou de surpresa. Quando João contara aquela história, ficara um ou dois dias
evitando a sala e, depois, acabou esquecendo.
Mas agora, seu
coração dava murros em sua garganta para pular pela boca. Seu estômago
embrulhou-se.
O silêncio estéril
e a escuridão mostravam suas garras.
“Era apenas uma história! Vá ao banheiro
logo e volte para o quarto!”, sussurrou a Voz do Bom Senso determinada. Ele
sorriu. Era engraçada a situação ridícula em que estava. Uma história, apenas
uma...
“E se for verdade...?”, gaguejou o Medo.
Sua voz era estúpida, mas a frase menor surtiu mais efeito sobre seu corpo,
fazendo suas pernas estremecerem.
O silêncio deu
lugar a um pequeno barulho no couro do sofá e depois retornou frígido.
Bruno olhava para a
direção do barulho sem piscar. Gostaria que fosse sua imaginação pregando
peças. Quando percebeu que o som não retornaria sorriu e enxugou o suor gelado
da testa.
– Onde estão seus
pais, Bruno? – Perguntou algo que sentava-se no sofá de costas para ele.
Bruno sentia a
situação sufocá-lo. Não conseguia achar palavras para responder a pergunta de
quem quer que seja.
– Meus pais também
dormiam naquele quarto. – A coisa ficou um longo tempo calada. – Mas eles foram
embora.
Sufocava cada vez
mais. Bruno colocou as mãos tremulantes no pescoço, tentando desapertá-lo.
– Quem... Quem é
você?
– Não lembra de mim?
– A voz da coisa parecia extremamente ofendida. – Eu ficava atrás de você...
Assistindo aos seriados. Pensei que tivesse me notado nas madrugadas em que
passamos acordados.
Bruno deu um berro,
caindo no chão.
– Não faça isso.
Vai acordar ela! – Pediu a coisa.
Quando levantou-se
do sofá, Bruno pôde enxergá-la.
A imagem de uma
menininha com os cabelos longos e loiros tremulava, iluminando o ambiente.
Seu rosto e seu
braço direito começaram a modificar. Rapidamente em lugar do nariz e do olho
esquerdo formaram cavidades rubras: feridas de mordidas. Longos arranhões de pata
passeavam, formando na face da pobrezinha caminhos oblíquos. O lábio superior
dava a impressão de ter sido puxado para cima, mostrando todos os dentes
sobrepostos na gengiva arroxeada. O braço agora estava pela metade, com um osso
exposto numa ferida com a carne quase moída.
Os olhos de Bruno,
diante da visão terrível, arregalaram-se tanto que ameaçavam pular. Ele começou
a lembrar de todas as poucas missas que não faltou e começou a rezar
sussurrando.
“Precisa fugir daí!”, a Voz do Bom Senso
e o Medo não falaram contrapostas e sim em uníssono.
Arfando, ele
começou a recuar, rastejando, em direção à escada.
Inspirava e expirava,
se afastando da imagem horrível e luminosa. Inspirava e Expirava. Inspirava e expirava o ar estéril e silencioso, enquanto a menininha, parada, chorava.
Ela passava os
dedos tremulantes sobre a ferida do rosto freneticamente. E voltava os dedos em
direção aos olhos, com muito sangue. O retorno do ato era as lágrimas que caíam
indiscriminadamente do olho bom.
Agia como se
tivesse acabado de descobrir que estava machucada.
– Me ajude,
Bruno... Me ajude!
Ele ainda se
afastava o mais rápido que podia em direção à escada. A perna doía
excruciantemente após a queda devida ao susto. Inspirava e expirava.
Inspirava e... Ele
sentiu o cheiro.
O odor de esgoto a
céu aberto. Cheiro de merda. O hálito de dona Bardô. Quando Bruno percebeu do
que se tratava, já era tarde. Ele tocava na velha corcunda.
Num grito, virou-se
para trás e viu a velha sorrindo. Ela alternava sua visão entre o garoto no
chão e o espírito da menina à frente, no sofá. Ela revelava todos os dentes
podres e um fio de saliva espessa caía entre eles.
– Carne fresca. –
Disse lentamente, deliciada.
– Fuja, Bruno! –
Gritou a menina ferida e reluzente. Ela chorava ainda mais, soluçando.
O garoto, no chão,
não conseguia se mover. Ele estava hipnotizado pelos olhos da velha que agora
fitava-o. Ela falava palavras estranhas, em uma língua desconhecida e o bafo
era torturante. Entre crises de pânico e ânsia, conseguiu finalmente
desgrudar-se dos olhos de dona Bardô.
A velha começou a
rosnar baixo e o volume dos sons que fazia com a boca aumentava gradualmente.
Os dentes podres começaram a se afiar. Como o fogo lambe o papel com álcool, os
pelos foram avançando sobre o corpo da bruxa. O nariz afinou-se, moldando
perfeitamente com a boca agora cheia de dentes pontiagudos.
Um cachorro. Ela estava
se transformando em um cão! Era tudo verdade! Era ela o cachorro que matara a
menina e não o da família... Era ela! A assassina.
“Carne fresca”, sussurrou o Medo em sua
cabeça, imitando a velha. “Fuja, Bruno!”,
agora a voz tornou-se aguda e dócil, imitando o fantasma da garota. “Você é o próximo, Bruno...”, o Medo
retornara com sua sonoridade normal, patética. Bruno esperava a Voz do Bom
Senso opinar contra, mas o que recebeu foi o silêncio.
Tudo estava escuro
novamente. O fantasma da menina ferida fora embora. Os olhos púrpura do cão
eram pequenas fontes luminosas com a fraca iluminação lunar. Ele rosnava forte
e Bruno podia sentir o odor pela boca de tão intenso.
– Por favor, tenha
piedade de mim...! – Pediu deitado sobre a madeira.
As patas enormes do
cão maligno estavam sobre ele.